Ando irritada nestes últimos dias. Tenho trabalhado de casa e venho enlouquecendo de pouco em pouco. Cada vez que o interfone toca, a cachorrinha late ou uma das meninas abre a porta do home office da sala de TV, sinto perder um tanto de lucidez e uma boa parte da paciência.
Explico: a empresa em que trabalho (e da qual me tornei sócia!) alugou um escritório novo, maior, incrível. Ele está em obras e vai ficar do nosso jeito, um espetáculo. Terei uma sala enorme, cheia de estantes, com direito a uma poltrona para leitura. Será o meu lugar de trabalho e de escrita, onde vai nascer meu livro e tantas edições desta newsletter. Mas precisamos devolver o escritório atual no fim de abril e ficamos temporariamente sem um local de trabalho.
A sensação é de andar para trás. Ecos da pandemia, talvez seja alguma forma de estresse pós-traumático. Sinto-me enjaulada em casa. Procuro pensar racionalmente e me lembro que não estamos sob o alerta de uma pandemia global, esperando a vacina, com medo de andar de elevador. Sou livre para ir e vir - mas nada compensa a perda temporária do escritório. Me lembro quando comecei na empresa e ganhei minha sala: celebrei muito aquele teto todo meu.
Mas agora ela acabou e a nova ainda não está pronta. Trabalhando de casa, sinto que a concentração e a produtividade foram para o espaço. O lar é o reino da preguiça e da bagunça e eu desaprendi a funcionar aqui. Começo e paro essa crônica inúmeras vezes: as interrupções e distrações são a regra aqui, não a exceção.
Além disso, tem a questão de trabalhar com as crianças em casa. Elas não entendem que o fato de eu estar aqui pertinho não significa que estou livre. A Isadora tem passado as tardes assistindo TV enquanto eu trabalho - parece que a minha presença tornou qualquer tipo de brincadeira radioativa. Quando largo a caneta e a chamo para brincar, ela não dá bola: só quer ver mais um episódio de A casa mágica de Gabby. E mais um. E mais um.
Tenho tentado começar todos os dias com exercício físico. Cheguei naquele momento, depois de insistir por anos, em que posso dizer com segurança que viciei no treino. Desço feliz para a academia do prédio, pois sei que depois de cinco minutos de aquecimento na esteira, meu humor estará renovado. Hoje em dia, treino para manter o corpo, a saúde e a sanidade mental.
No entanto, parece que o bom humor é como uma bolsa de água quente: ele esfria conforme o tempo passa. Às 17h, estou gelada, esgotada e sem pique de encarar o combo de dar banho nas meninas, jantar e colocar todo mundo para dormir. Quando consigo deitar na minha cama, tenho energia para ler apenas por dez minutos antes de o sono embaralhar todas as palavras.
Estou lendo É isto um homem?, de Primo Levy. Essa foi a obra que inaugurou o gênero de literatura de testemunho e que narra a experiência de Levy em Auschwitz. Não é uma leitura fácil: Levy luta para ficar vivo e manter sua humanidade e dignidade nas piores condições imagináveis. O Campo, como ele chama, é lugar de monstruosidades e maldades mil - e ele conta como não há linguagem para dar contornos para os conceitos de “frio”, “cansaço” ou “fome” por lá. O sofrimento está em um outro patamar.
Estou relendo-o para a minha pesquisa, pois há comparativos assombrosos com o sofrimento gerado pelos ataques do 7 de outubro de 2023. Mas há um outro paralelo óbvio, aquele com minha atual situação, apesar de qualquer comparação ser risível. Ainda assim, confio na literatura como um guia: ela nos mostra as piores situações já enfrentadas pela humanidade, os maiores sofrimentos. Perto de Auschwitz, minhas dores não são nada. A leitura nos dá perspectiva. Me dou conta: estou reclamando de barriga (literalmente) cheia.
É nessa hora, pouco antes de dormir, que me lembro de todos os meus privilégios e direitos. Não estou trancada em lugar algum, mas sim em um apartamento espaçoso e confortável. Não sofro violência - apenas os estresses diários da maternidade. Posso sair a hora que quero, e aproveito para marcar mais reuniões e almoços. A manicure vira uma festa; a ida à terapia, um alívio. Um almoço com uma amiga, então, é motivo de celebração.
Assim desarmo meu mau humor e adormeço contando as histórias da minha gratidão. Durmo um sono pesado e acordo leve no dia seguinte. Arrumo as meninas para a escola e desço para treinar. Parece que este será um novo dia, mais tranquilo. E assim é - pelo menos até eu abrir o notebook e ser interrompida pela primeira vez.
(Respiro e relembro: é temporário).
Eu trabalho e escrevo no caos doméstico mesmo, e realmente não é fácil… rs
Carol, estou tão acostumada com o caos que honestamente achei essa mesa arrumada! É uma crônica e não um convite pra palpite, eu sei, mas andar ajuda muito a arejar as ideias. Também detesto ficar fechada num lugar. A maioria dos meus textos só sai em trânsito: no metrô, na fila do café, nos minutos roubados entre coisas que eu deveria de fato estar fazendo. Acho que se eu tivesse um lindo ambiente pra escrever, eu passaria o tempo todo no celular e acabaria escrevendo no metrô mesmo 😅